O Futuro do Brasil e a Nova Estratégia de Desenvolvimento Nacional.
“Grande parte do território nacional brasileiro hoje é pastagem degradada. Podemos converter essa vasta área de pastagens, pela intensificação da pecuária e pela recuperação dos solos, e organizar na área cultivada ampliada um novo paradigma de diversificação de lavouras de alto valor agregado, combinado com o cultivo de peixes e com o manejo florestal sustentável — e aí o Brasil ascenderá ao lugar nº 1 na agricultura mundial —, não só para financiar o nosso desenvolvimento, mas também para alimentar a humanidade.” (Mangabeira Unger)
CÂMARA DOS DEPUTADOS – DETAQ
Com redação final Sessão: 181.1.55.O Hora: 10h44 Fase: CG
Orador: MANGABEIRA UNGER Data: 02/07/2015
Sumário: Comissão Geral com a presença do Ministro da Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República, Roberto Mangabeira Unger, para esclarecimentos relativos à Pasta.
O SR. PRESIDENTE (Deputado Eduardo Bolsonaro) – Convido o Sr. Ministro para ocupar a tribuna, pelo tempo de 40 minutos. S.Exa. tem a palavra.
O SR. MINISTRO ROBERTO MANGABEIRA UNGER – Sr. Presidente, Sras. Deputadas, Srs. Deputados, meus concidadãos, o Brasil se levantará.
Meu tema é: O Futuro do Brasil e a Nova Estratégia de Desenvolvimento Nacional.
Desenvolverei a minha reflexão com os seguintes passos: primeiro, um comentário a respeito da tarefa da Secretaria de Assuntos Estratégicos; segundo, uma palavra a respeito do momento de inflexão de que nós nos aproximamos em nossa história nacional, com o esgotamento de uma estratégia de desenvolvimento e a construção de outra; terceiro, uma visão de conjunto dessa nova estratégia nacional que temos de construir; quarto, a primeira das três grandes vertentes dessa estratégia: a qualificação do ensino básico; quinto, a segunda vertente dessa estratégia: o produtivismo includente, a ampliação das oportunidades econômicas; sexto, a terceira vertente dessa estratégia: a sua tradução em iniciativas para as grandes regiões do País; e sétimo, os obstáculos a transpor nessa obra de construção nacional.
Falemos sobre o trabalho da Secretaria de Assuntos Estratégicos.
A Secretaria de Assuntos Estratégicos existe para assessorar a Chefia de Estado e de Governo, mas também existe para liderar um processo coletivo de construção do projeto de Estado, dentro e fora do Estado. O tema central é o modelo de desenvolvimento do País.
Construir uma estratégia de desenvolvimento nacional não é apenas formular um plano de governo. É também trabalhar por um projeto de Estado, um projeto capaz de sobreviver ao Governo que está momentaneamente no poder. A construção de um projeto de Estado exige um processo decisório aberto, um processo que engaje todas as instâncias do Estado e todas as vozes da sociedade brasileira na construção desse projeto.
Nós estamos acostumados, no Brasil, a deliberar sobre as políticas públicas em um processo decisório fechado, dentro do Executivo. Os governos costumam temer que qualquer relação de desavença sirva como uma cunha que a Oposição possa aproveitar. Ora, o processo decisório fechado é incompatível com a construção de um projeto de Estado. Um projeto de Estado exige que as grandes opções do País sejam amplamente debatidas, antes de serem decididas.
O apelo a um processo decisório aberto causa entre nós um estranhamento. Paciência! Se quisermos um projeto de Estado, teremos de aprender a manejar o processo decisório aberto.
A construção de um projeto de Estado tem de ocorrer também pelo aprofundamento da cooperação dentro da Federação brasileira. Todos os avanços nas políticas públicas passam pelo federalismo cooperativo, pela cooperação vertical, entre os níveis da Federação, e pela cooperação horizontal, entre Estados e Municípios.
O método da construção do projeto de Estado há de partir não de dogmas e de decisões a priori, mas daquilo que já deu certo. E muita coisa já deu certo no Brasil. É preciso reconhecer os experimentos que prosperam para difundi-los.
Por fim, e o mais importante: a característica decisiva na construção de um projeto de Estado com uma nova estratégia de desenvolvimento nacional há de ter dois atributos decisivos; o primeiro atributo é demarcar um caminho, um rumo para o futuro, e o segundo atributo é identificar dentro da circunstância em que nos encontramos os primeiros passos para começar a trilhar esse caminho. É nesse sentido que trabalhamos na Secretaria de Assuntos Estratégicos. O princípio que governa as nossas ações é: o único longo prazo que conta é o longo prazo que começa em curto prazo.
Agora avanço para o segundo passo da minha apresentação. Vamos falar sobre a mudança, a grande mudança que precisa ocorrer no Brasil hoje: nós estamos vindo de uma estratégia de desenvolvimento nacional e agora precisamos avançar para outra.
No período histórico recente, o desenvolvimento do Brasil teve duas bases. A primeira base foi a massificação do consumo e o aumento da renda popular. A segunda base foi a produção e a exportação de commodities, de produtos primários pouco transformados, aproveitando as riquezas da natureza brasileira: agricultura, pecuária e mineração.
Esse modelo permitiu resgatar milhões de brasileiros da pobreza extrema e manteve a grande maioria dos brasileiros empregados. A sua continuidade, porém, dependia de circunstâncias especiais: abundância de dinheiro fácil no mundo, aceleração febril do nosso maior mercado, a China, e alta do preço dos produtos primários.
Quando essas circunstâncias viraram, esse modelo de desenvolvimento inviabilizou-se, e ao inviabilizar-se revelou a limitação que trazia desde o início, que era a de conviver com um nível muito baixo de produtividade na economia brasileira. Mantivemos a grande maioria dos brasileiros empregados, porém empregados em serviços de baixíssima produtividade. Como muitos países de renda média, o Brasil encontra-se numa prensa entre economias de trabalho barato e economias de produtividade alta. Nosso interesse é escapar dessa prensa pelo lado alto, com uma escalada de produtividade.
Conseguimos por algum tempo dar sobrevida a essa estratégia exaurida de desenvolvimento nacional, recorrendo a políticas chamadas contracíclicas, políticas que mantiveram o poder aquisitivo mesmo diante da virada de circunstâncias econômicas no mundo. Mas ao final essas políticas contracíclicas também se exauriram, porque são incapazes de resolver o problema subjacente da produtividade, e com isso chegamos à tarefa, afinal, de construir outra estratégia de desenvolvimento, uma estratégia baseada na ampliação de capacitações educacionais e de oportunidades produtivas, com a democratização da economia do lado da produção e da oferta, e não mais apenas do lado do consumo e da demanda.
A grande diferença entre democratizar a economia do lado da demanda e democratizá-la do lado da oferta é o fato de que, enquanto a democratização da demanda se pode fazer só com dinheiro, a democratização da oferta exige inovação institucional, inclusive inovação nos arranjos que organizam a economia de mercado. Não basta regular a economia de mercado, não basta atenuar as suas desigualdades por meio de políticas sociais retrospectivas ou compensatórias; é necessário democratizar a economia de mercado para que mais gente tenha mais acesso a mais mercados, de mais maneiras. Essa é uma maneira de descrever o propósito da nova estratégia de desenvolvimento nacional.
E o ajuste fiscal? O ajuste fiscal deve ser entendido como uma ponte, uma travessia entre a antiga estratégia e a nova estratégia.
Há duas maneiras de entender a lógica do ajuste fiscal. Uma maneira é entendê-la da perspectiva da confiança financeira. Segundo essa narrativa, o ajuste é para ganhar a confiança financeira, confiança financeira suficiente para trazer investimento, e investimento para produzir o crescimento.
Nunca funcionou em qualquer lugar no mundo — haja vista a situação a que a Europa está entregue hoje — a combinação da austeridade fiscal com a estagnação econômica. O entendimento alternativo do ajuste fiscal é exatamente o inverso. O ajuste fiscal não é para ganhar confiança financeira; o ajuste fiscal é para que o Governo e o País não dependam da confiança financeira. É para que o Estado tenha margem de manobra para iniciar um projeto rebelde de desenvolvimento nacional e assegurar a primazia dos interesses do trabalho e da produção sobre os interesses do rentismo financeiro.
Com isso, chego ao terceiro passo do meu raciocínio: a descrição das grandes vertentes que compõem essa nova estratégia de desenvolvimento brasileiro, uma visão de conjunto.
É uma estratégia que procura fundar o desenvolvimento do País sobre a base do fortalecimento das capacitações e da ampliação das oportunidades. É, portanto, um produtivismo includente e capacitador. E essa estratégia incorpora três grandes eixos que lhe definem o conteúdo. O primeiro eixo é um conjunto de iniciativas destinadas a melhorar a qualidade da educação básica; o segundo eixo são as medidas que compõem o produtivismo includente, a ampliação das oportunidades produtivas; e o terceiro eixo é a tradução da estratégia nacional em políticas regionais vistas de outra forma, vistas de uma forma diferente da forma tradicional.
Agora dedicarei o restante da minha exposição a tratar de cada um desses eixos e dos obstáculos que teremos de superar para efetivar essa estratégia nacional.
O primeiro grande eixo — este é o quarto passo da minha argumentação — é a qualificação do ensino básico, a parte educadora, projeto prioritário do Governo, que deve ser também o projeto prioritário do País.
Nos últimos anos, o Brasil avançou muito no acesso à educação básica, e temos muito ainda a fazer em matéria de acesso, mas não podemos esperar para abordar o problema da qualidade da educação. A qualidade da educação brasileira é calamitosa. Não há outra palavra para descrevê-la. No final do ensino médio metade dos alunos mal consegue ler um texto, e a outra metade, a metade que consegue ler, mal consegue entender. Cito um exemplo: se convidarmos alunos para interpretar um texto, eles ou vão repetir o conteúdo do texto, ou vão entender o convite para interpretá-lo como uma provocação para uma livre associação de ideias. Vão oscilar entre a repetição e o devaneio.
Enquanto tivermos uma população constituída em grande parte por pessoas que não conseguem lidar com o pensamento escrito, a única coisa que poderemos fazer no futuro é exportar soja e minério de ferro. Essa situação na educação básica é incompatível com um grande futuro nacional para o Brasil. Temos que buscar uma transformação revolucionária na qualidade e, portanto, na natureza do ensino no País.
O ponto de partida é reconhecer que o ensino que temos tido é uma educação pautada pelo decoreba e pelo enciclopedismo raso e extravagante, com um número grande de matérias contendo um sem-número de fatos a serem memorizados. É uma imitação, uma versão degenerada da educação francesa do Século XIX, dogmática e enciclopédica, como se o nosso objetivo fosse transformar crianças brasileiras do Século XXI em crianças francesas do Século XIX. É uma camisa de força, uma camisa de força que contradiz os pendores dos brasileiros. O Brasil é uma grande anarquia criadora, e nós vestimos essa camisa de força, que é a negação das nossas qualidades, é um ensino incompatível com as exigências da ciência avançada e da produção avançada. Chegou a hora de tirar essa camisa de força e construir no País outro tipo de educação, uma educação analítica e capacitadora.
Temos de avançar em dois trilhos paralelos: o trilho do ensino geral e o trilho do ensino prático, ou vocacional.
No ensino geral, a educação deve ser organizada para focar a aquisição das competências analíticas centrais, como interpretação de texto e raciocínio lógico. É claro que competências analíticas não se adquirem num vazio de conteúdos, mas o que vale em matéria de conteúdo não é a abrangência, é a profundidade. Portanto, trata-se de um ideal de aprofundamento seletivo, como ferramenta para dominar as competências analíticas.
E no outro trilho, o trilho do ensino prático e vocacional, o ideal é que toda criança brasileira não tenha de ser um acadêmico insipiente. Mas não se trata de um ensino prático à antiga, apenas de ofícios rígidos e de profissões tradicionais, e sim de um ensino prático que priorize as capacitações práticas, genéricas e flexíveis exigidas pelas tecnologias contemporâneas. É isso que queremos.
Para reorganizar a educação brasileira nesse caminho, temos de resolver um problema preliminar: a falta de um desenho de cooperação federativa na educação, que na Saúde temos, mas na Educação não. Um desenho de cooperação vertical, entre os três níveis da Federação, e horizontal, entre os Estados e os Municípios, tudo isso passa pelo federalismo cooperativo. Temos de construir instituições e regras que permitam, em um País grande, desigual e federativo como o nosso, reconciliar a gestão local das escolas pelos Estados e Municípios com padrões nacionais de investimento e de qualidade.
Esse desenho exige que sejam redistribuídos recursos de lugares mais ricos para lugares mais pobres dentro da Federação. Exige também que quando uma rede escolar local persistir abaixo do patamar mínimo aceitável de qualidade a Federação se junte para socorrer aquela rede e consertá-la. Não se trata de uma intervenção federal, e sim de uma ação concertada dentro da Federação, para dar realidade ao princípio de que a qualidade da educação que uma criança brasileira recebe não pode depender do acaso, do lugar onde ela nasce.
Por outro lado, essa obra revolucionária na educação passa por todo um conjunto de iniciativas destinadas a qualificar os professores e os diretores, para propor diretrizes de uma carreira nacional de professor, não uma carreira federal, mas uma carreira organizada pelos Estados e Municípios, uma carreira atraente, uma carreira que familiarize o professor não só com toda uma área do conhecimento, mas também com os instrumentos da didática, e que lhe permita mobilidade dentro da Federação. E essas iniciativas destinadas a qualificar os professores e os diretores têm de ser complementadas pelo aproveitamento das tecnologias contemporâneas, para organizar, por exemplo, o ensino à distância, a voz que vem de fora e que sacode a mediocridade dentro da sala de aula.
Ao conceber esse projeto educacional, temos de enfrentar também os obstáculos sociais e emocionais, os obstáculos não cognitivos que grande parte dos alunos enfrenta para poder aproveitar uma educação de qualidade. Não bastam as competências analíticas, também são necessárias capacitações de comportamento e de consciência.
Há duas grandes famílias de capacitações indispensáveis. A primeira são as capacitações de alta disciplina. O requisito essencial é o vínculo entre a escola e a família. A escola precisa buscar a família, sobretudo a família pobre, e trazer a criança para o espaço escolar num turno escolar ampliado. E a segunda família de capacitações é a família das capacitações para cooperar. Tudo, na ciência contemporânea e na produção contemporânea, depende da cooperação. Não se trata de a escola doutrinar a cooperação, mas sim de a escola praticar a cooperação, organizar toda a educação na base de equipes de professores e de alunos.
A cooperação substitui a mistura de individualismo e de autoritarismo que caracteriza a nossa sala de aula, com o professor lá na frente e o aluno confinado à sua mesa, afundando no isolamento e no tédio.
O País todo tem de abraçar esse projeto. É um projeto libertador. Se os mesmos agentes de sempre dominarem o debate a respeito da educação, o Projeto Pátria Educadora será apequenado. Precisamos acender as luzes, ampliar o debate e chamar toda a Nação para a discussão.
O Congresso Nacional é o grande agente para a ampliação do debate a respeito da qualificação do ensino básico.
O quinto passo da minha explanação tem a ver, então, com o segundo grande eixo dessa nova estratégia de desenvolvimento, que é o produtivismo includente, a democratização das oportunidades produtivas.
Há quatro grandes capítulos nesse segundo eixo da estratégia de desenvolvimento. O primeiro capítulo é o fomento do empreendedorismo de vanguarda. Nós temos no Brasil uma cultura empreendedora vigorosa, mas a maioria das nossas empresas continua afundada num relativo primitivismo produtivo. Mesmo as nossas maiores empresas, como operam no setor de aproveitamento de recursos naturais, têm um espectro de tecnologia e de práticas avançadas relativamente estreito.
Em particular, faz-nos falta no País uma figura que desempenha um papel central nas grandes economias do mundo, que é a empresa média de vanguarda. É ela que costuma desenvolver as inovações mais radicais.
A chave para promover o empreendedorismo de vanguarda é um desenho institucional que combine o acesso ao crédito, à tecnologia, às práticas avançadas e aos mercados mundiais. Crédito por si só não basta.
O segundo capítulo dessas medidas voltadas para o produtivismo includente tem a ver com a agricultura. Agropecuária é a maior atividade econômica do País. Nós estamos acostumados a ver a agricultura apenas como uma fonte de riqueza para subsidiar os outros setores da economia, mas na verdade é na agricultura que podem aparecer as práticas mais avançadas, que depois se disseminam para outros setores.
Há três grandes objetivos entrelaçados. O primeiro é superar o contraste entre agricultura empresarial e agricultura familiar. Não há duas agriculturas no mundo, há só uma. E agricultura familiar só tem futuro na medida em que ela ganhe atributos empresariais. O segundo objetivo é evitar o contraste entre cidade cheia e campo vazio, com a industrialização dos produtos agropecuários e a diversificação da produção agropecuária para promover uma vida rural variada e vibrante. E o terceiro objetivo é promover em todo o País uma classe média rural forte, como uma vanguarda, atrás da qual avançará uma multidão de produtores agrícolas mais pobres.
Para abrir esse caminho, nós temos de perseguir dois conjuntos de iniciativas; de um lado, iniciativas físicas, iniciativas econômicas no sentido estreito. O que prevalece na agropecuária brasileira hoje é a pecuária extensiva, combinada com a monocultura de cereais. Grande parte do território nacional brasileiro hoje é pastagem degradada. Podemos converter essa vasta área de pastagens, pela intensificação da pecuária e pela recuperação dos solos, e organizar na área cultivada ampliada um novo paradigma de diversificação de lavouras de alto valor agregado, combinado com o cultivo de peixes e com o manejo florestal sustentável — e aí o Brasil ascenderá ao lugar nº 1 na agricultura mundial —, não só para financiar o nosso desenvolvimento, mas também para alimentar a humanidade.
Essas ações físicas precisam ser combinadas com uma série de inovações institucionais. Precisamos, primeiro, assegurar à EMBRAPA o modelo institucional e jurídico que lhe permita empreender e aproveitar os seus novos inventos a serviço da produção; segundo, reorganizar o sistema de extensionismo rural, de ajuda técnica ao produtor, em regime de cooperação federativa; terceiro, democratizar o acesso às novas formas com que a agricultura se resguarda contra a combinação do risco de clima com o risco de preço, que é o hedging financeiro; e quarto, reorganizar os mercados agrícolas para fortalecer o produtor, inclusive pelo associativismo, quando ele lida com oligopólios do lado da venda dos insumos e do lado da compra dos produtos. É, portanto, uma qualificação do nosso modelo agropecuário que exemplifica ao mesmo tempo a democratização da oferta.
O terceiro capítulo desse produtivismo includente tem a ver com as relações entre o trabalho e o capital. Nós últimos anos, no Brasil, a informalidade na economia diminuiu, mas dentro da economia formal a precarização aumentou. Uma porcentagem crescente dos trabalhadores brasileiros está em situação precária, de trabalho temporário, ou terceirizado, ou autoemprego, em situação não efetivamente protegida pelas leis. E aí surge uma divisão, um dualismo no mercado de trabalho entre trabalhadores relativamente estáveis e trabalhadores em situação de precariedade.
O Brasil não pode prosperar como uma China com menos gente, apostando em trabalho barato e precarizado. Isso é incompatível com uma escalada de produtividade. Nós precisamos organizar, ao lado do direito do trabalho tradicional, um segundo corpo de regras para proteger, representar e organizar esses trabalhadores precarizados e superar a divisão entre o Estado e os precarizados.
O quarto capítulo do produtivismo includente consiste em levantar as grandes travas que oneram o impulso produtivo no País, e eu vou citar três dessas travas. A primeira é a confusão ambiental, que é um pesadelo para os produtores de todas as escalas, em todos os setores e em todas as regiões do País. E o Brasil não entende a natureza do problema. Não é que as regras ambientais sejam exigentes demais; é que, em rigor, não existem regras ambientais. O nosso direito ambiental é um pseudodireito, quase inteiramente processual, vazio de regras e de paradigmas.
Existem, por exemplo, estudos sobre impactos ambientais, mas não se determina o critério àluz do qual esses estudos sobre impactos devem ser realizados para informar uma decisão. Não há, por exemplo, regras que distingam o tratamento das áreas ocupadas do das áreas virgens, e a consequência é uma delegação de poderes discricionários às autoridades administrativas, que viram joguetes entre ideologias e interesses contrastantes, e daí vem o pesadelo para o produtor.
A solução é que haja regra.
A segunda trava é o regime tributário, uma colcha de retalhos organizada entre o ICMS e uma multidão de outros impostos casuísticos, que produz um trauma econômico desproporcional à receita que arrecada, distorce os preços relativos, acirra a guerra fiscal dentro da Federação e castiga os Estados predominantemente consumidores dos produtos industrializados do Sudeste.
A solução é fazer o que o resto do mundo já fez, em grande maioria: começar a reorganizar o regime tributário em torno de um imposto abrangente, universal e neutro, sobre o valor agregado, com um componente federal e um componente estadual. Deve-se acabar com a guerra fiscal na Federação, combinando, de um lado, esse imposto neutro e ostensivamente regressivo com um conjunto de tributos fortemente progressivos, sobretudo sobre o consumo individualizado, e de outro lado com um tributo sobre as exportações cuja alíquota varie inversamente à agregação de valor, para combater a chamada doença holandesa e para fomentar a industrialização dos produtos primários.
Já há uma maioria dentro da Federação em favor de uma mudança como essa, mas essa maioria latente só pode transformar-se numa maioria explícita com um grande trabalho de articulação política dentro da Federação brasileira.
A terceira trava que onera o imposto produtivo no País é a nossa legislação de controle, que exprime uma cultura de desconfiança e funciona como uma camisa de força. Nós precisamos agora reconstruir o sistema de controle para que ele seja intimamente ligado a uma agenda de reforma da gestão pública. Os órgãos de controle devem estar dentro da Administração pública, ajudando a qualificar as práticas de gestão. E toda a nossa gestão precisa pautar-se por um ideal de experimentalismo. O Estado não deve ter de escolher entre não adotar uma medida ou adotá-la só universalmente. O Estado deve poder experimentar. E a legislação de controle precisa ser adaptada aos requisitos do experimentalismo necessário ao fomento do imposto produtivista no Brasil.
Agora chego ao sexto passo do meu raciocínio, que aborda a terceira vertente dessa nova estratégia nacional de desenvolvimento. A primeira foi a qualificação do ensino básico; a segunda, a democratização das oportunidades produtivas, o produtivismo includente; a terceira é uma nova política regional.
Nós temos tido no Brasil uma concepção viciosa da política regional como uma política de compensações para o atraso relativo. A verdadeira vocação da política regional é outra, é acalentar vanguardas e vanguardismos alternativos no País.
A estratégia nacional só se efetiva quando traduzida em políticas para as grandes Regiões do Brasil. É ali que a estratégia nacional toca o chão da realidade. Essa nova política regional tem de vir ao encontro dos agentes que já existem — por exemplo, os empreendedores emergentes no Semiárido nordestino —, para provê-los de instrumentos e oportunidades, e tem de adotar como seu método central a cooperação federativa.
Por isso, Sr. Presidente, Sras. e Srs. Deputados, eu dedico grande parte do meu tempo a andar pelo País, a ir a cada Estado para trabalhar com o Governador, com sua equipe, com as organizações empresariais e sociais, para ajudá-los a definir uma estratégia interna, endógena, daquela Região, que exemplifique a nova estratégia nacional. Um fruto desse trabalho acontecerá amanhã, em Goiânia, onde se reunirão pela primeira vez os Governadores do Centro-Oeste, para definir uma estratégia do Centro-Oeste, uma estratégia que aproveite as vocações existentes nesta Região, que qualifique o modelo agropecuário na direção que eu antes descrevi, que organize a industrialização, não só a industrialização dos produtos agropecuários, mas a industrialização baseada no conhecimento, na tecnologia avançada.
Os dois requisitos essenciais para essa estratégia regional são: primeiro, a formação de recursos humanos, o novo modelo educacional; segundo, o fomento do empreendedorismo de vanguarda. Cada Região do País pode sinalizar um caminho para todo o País. Na Amazônia, no Nordeste, no Centro-Oeste, o Brasil tem uma segunda chance.
Chego, por fim, Sr. Presidente, ao último passo do meu raciocínio: os obstáculos e as oportunidades. Dirão que tudo isso é um voluntarismo fantasioso, que não há base social concreta no País para um projeto nacional dessa envergadura. Digo o contrário: que a base já surgiu.
O fenômeno social mais importante ocorrido no Brasil nas últimas décadas é o surgimento, ao lado da classe média tradicional, de outra classe média, morena, mestiça, de uma pequena burguesia empreendedora, de milhões de brasileiros que lutam para abrir e manter pequenos negócios, que estudam à noite e que inauguram no País uma nova cultura de autoajuda e de iniciativa. Atrás deles há uma multidão maior de trabalhadores ainda pobres que já se converteram a essa cultura e a essa consciência.
Vargas organizou uma revolução no século passado aliando o Estado aos setores organizados da economia, aos setores intensivos em capital, sobretudo da indústria nascente. Hoje a revolução brasileira é o uso pelo Estado de seus poderes e recursos para permitir à maioria ainda pobre seguir o caminho da vanguarda de emergentes. É para isso que precisamos construir essa nova estratégia nacional de desenvolvimento. É para isso que são todas essas inovações institucionais que eu advoguei na educação e na produção. É para isso que precisamos assegurar a primazia dos interesses do trabalho e da produção sobre os interesses do rentismo financeiro.
A base já existe. O que ainda não existe é o ideário e a sua tradução em ação política. E há outro obstáculo, intangível, porém mais substancioso: esse projeto pressupõe uma pretensão de grandeza, e a grandeza entre nós é uma ideia perturbadora — grandeza para o País e grandeza para cada brasileiro, engrandecimento, cada brasileiro ficar de pé.
Nós temos no nosso País muitos partidos, mas em rigor nós só temos tido uma ideia: a ideia do social. Na política brasileira, quase todos professam ser sociais liberais ou sociais democratas. O que é o social? O social é o açúcar com que se pretende dourar a pílula do modelo econômico. Mas o povo brasileiro não quer açúcar. O povo brasileiro quer braços ágeis e olhos para o dinamismo que fervilha desequipado no País.
Nós já temos o atributo mais importante: vida, vitalidade, uma vitalidade assombrosa, anárquica e quase cega. A vitalidade precisa de uma aliada. A aliada da vitalidade é a imaginação, sobretudo, uma imaginação institucional. Aliada à imaginação, a vitalidade converte-se em grandeza.
O Brasil se levantará. (Palmas.)